domingo, 27 de abril de 2014

O Von Mises deve andar revolto na tumba

 

É sintomático que um site na Internet que se diz de Von Mises critique a democracia.

Vemos como o pensamento “liberal” actual se tornou absurdo, porque a condição da economia política defendida por Von Mises — como, aliás, por todos os liberais de renome do fim do século XIX e princípio do século XX — era a democracia. Digo “era”, porque parece que já não é. E não é porque o que temos hoje já não é o liberalismo, mas antes é o neoliberalismo. O neoliberalismo, por sua própria natureza, é a negação da democracia.

É de notar que hoje se defenda, em um site que se diz de Von Mises, um ponto de vista semelhante ao de uma determinada direita de tipo “PNR”, que não passa de uma variante de um certo socialismo. Aquilo a que se convencionou chamar hoje de “extrema-direita” (por exemplo, a Front Nationale de Marine Le Pen) não passa de um variante laicista radical (anti-monoteísta e pagã), estatista e nacionalista do socialismo. Eu diria mais: a principal diferença entre o PNR e o Partido Comunista é a de que este último (com a queda do muro) deixou de ser um partido internacionalista e passou a ser (alegadamente) um partido “soberanista”. Ou seja, hoje, a principal diferença é nenhuma.

Reduzir a democracia à “dependência do Estado” não lembraria a Von Mises (e nem ao careca!). Mas o que está em causa, naquele artigo, é a defesa das ideias de Hayek (ou a actual interpretação das ideias de Hayek), e já não as de Von Mises. O pobre Von Mises apanha por tabela.

O libertarismo exacerbado — tal qual se passou com o anarquismo do princípio do século XX — é um método para se atingir (consciente- ou inconscientemente) uma qualquer forma de totalitarismo, ou então, uma qualquer forma de tirania (que pode não ser totalitária). Por exemplo, o libertarismo do Bloco de Esquerda (e também do Partido Comunista, embora em menor escala) esconde inequivocamente uma agenda totalitária (política de “terra queimada”). De um modo semelhante, o libertarismo de Hayek (ou a interpretação que se dá hoje a Hayek) esconde actualmente um desígnio tirânico, como é evidente.

Hoje, “libertarismo de direita” é sinónimo de “neoliberalismo”.

Hoje, entramos em um maniqueísmo: ou o “Estado máximo” (Partido Socialista, PNR, Partido Comunista, Bloco de Esquerda, etc.), ou o “Estado exíguo” (Partido Social Democrata, CDS/PP).

O único partido verdadeiramente conservador, democrático e de direita é o PPM, que já não está activo.

O princípio da democracia não tem nada a ver directamente com o Estado: a palavra “democracia” refere-se, em primeiro lugar, a uma teoria segundo a qual, a autoridade política se fundamenta no Poder que cada homem tem de se governar a si mesmo (princípio da autonomia, de Kant). Esse Poder de cada um se governar a si mesmo implica deveres e direitos — mas não só direitos! E quando os deveres do cidadão são castrados e apenas os direitos são considerados, já não vivemos em democracia.

A democracia é apenas e só uma forma de governo. O Estado é outra coisa!: não tem necessidade da democracia para existir. Ligar necessariamente (nexo causal) o Estado (ou a força do Estado, seja este “máximo” ou “mínimo”) à democracia é uma estupidez. “Democracia” e “Estado” são conceitos correlatos mas independentes um do outro. Dizer que “a democracia é ausência de Estado” é tão estúpido como dizer que “a democracia depende exclusivamente do Estado”. Os teóricos da Razão de Estado existem pelo menos desde o século XVI (se não mesmo antes), e não havia então qualquer vislumbre de democracia.

Amiúde confunde-se “democracia política”, por um lado, com “socialismo económico e social”, por outro lado. E, tal qual aconteceu com o fascismo italiano (não esquecer que Mussolini foi militante do Partido Socialista italiano), a luta contra o socialismo (ou a luta dos socialistas contra o capitalismo) justifica hoje a defesa de uma qualquer tirania.

A União Europeia é o exemplo do sincretismo entre as duas facetas deste maniqueísmo: é a esperança dos neoliberais e dos socialistas, embora esperanças diferentes; esperanças essas que se traduzem, de um lado e doutro de forma diferenciada, na alienação da democracia e na instituição de uma tirania em função de uma visão particular do Estado. Mais uma vez, de um lado e doutro, é o Estado que define e subalterniza a democracia como forma de governo.

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