sábado, 14 de junho de 2014

Sobre a obrigatoriedade do voto

 

Vamos colocar o problema da “liberdade” em termos kantianos — embora eu não concorde totalmente com a visão de Kant acerca da “liberdade”; mas está na moda concordar com ele. Para Kant, a “liberdade” pode ser negativa e positiva (repare-se que é “e”, e não “ou”).

A liberdade negativa é aquela que consiste em não ser impedido de agir — a de não ser impedido por outrem naquilo que desejamos fazer, ou a liberdade de se exprimir sem censura. Em contraponto, a liberdade positiva é a liberdade do cidadão-legislador, segundo o princípio de autonomia de Kant, que consiste em tomar parte nas decisões políticas e públicas, e de co-exercer a autoridade em geral.

amish1/ À primeira vista, parece que a abstenção do acto de votar em eleições políticas é apenas uma expressão de liberdade negativa. Parece que o abstémio do voto desdenha a liberdade positiva. É o que o escriba do blogue Rerum Natura pretende dizer aqui.

Por exemplo, existem certas representações colectivas de determinadas comunidades, como por exemplo, entre os Hutteritas e/ou nos Menonitas (por exemplo, a comunidade Amish, nos Estados Unidos), que por motivos religiosos proíbem o voto (entre outras coisas). O escriba do Rerum Natura pode considerar que as pessoas dessas comunidades são estúpidas; mas isso é problema dele. Ele tem o direito de considerar que toda a gente é estúpida com sua (dele) excepção.

Obrigar o cidadão a votar (nem que “seja em branco”, como diz o escriba do Rerum Natura) é uma intrusão insuportável do Estado na vida privada e até íntima do cidadão entendido como pessoa — e não só enquanto indivíduo. O cidadão não é um número que apenas conta para as estatísticas: antes, é uma pessoa.

2/ Num sistema dito “democrático” como é o português, em que o cidadão não sabe em quem vota (não conhece sequer, muitas vezes, o político eleito pela sua circunscrição — com excepção das eleições autárquicas!), não é legítimo que se seja obrigado a votar. No sistema “democrático” português, obrigar o cidadão a votar seria um exercício de pura violência de Estado — porque o Estado português não é democrático propriamente dito. O sistema político português é uma oligarquia partidária, e não uma democracia.

3/ A abstenção é uma forma de participação política — embora negativa. Por isso, podemos dizer que a abstenção é também, até certo ponto, uma forma de liberdade positiva. De resto, não há uma diferença real entre a abstenção e o voto em branco ou o voto nulo: a diferença é apenas de categorização estatística, mas em política significa praticamente o mesmo.

Não devemos partir do princípio de que as pessoas não vão votar porque está a chover, ou porque foram para a praia. Pode haver gente que não vote por essas razões, mas seria um abuso generalizar.

Se a abstenção é grande, cabe ao sistema político reformar-se para cativar uma maior afluência às urnas de voto — mas nunca inverter o ónus da responsabilidade política, utilizando a força bruta do Estado sobre as pessoas e impondo aos cidadãos um sistema político caduco e que de “democrático” só tem o nome.

1 comentário:

  1. Também sou contra a obrigatoriedade do voto. Não julgo que isso fosse resolver nada, pois os problemas da nossa democracia não têm nada a ver com falta de votos, mas sim com a corrupção e a falta de valores.

    Publiquei:

    http://historiamaximus.blogspot.pt/2014/06/sobre-obrigatoriedade-do-voto.html

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