terça-feira, 29 de julho de 2014

A expansão da “ideologia de mercado” tem que ser travada

 

A grande diferença de quem vive hoje e de quem viveu há (digamos) trinta anos, não é a ignorância das massas; as massas nunca foram “sábias”. O que se passa hoje é que a ignorância das massas é de um tipo diferente: é uma douta ignorância — não no sentido da “douta ignorância” de Nicolau de Cusa, mas antes no sentido da “ignorância dos doutores” que se estendeu às massas.

A principal diferença, hoje, é o conceito de “privacidade” (no sentido de “vida privada”). Quem vive hoje, ou não tem uma noção adequada de “privacidade”, ou não se preocupa com ela. Hoje, uma grande parte das pessoas abandona a vida pública apenas durante as horas em que vai dormir — o que não acontecia há trinta anos.

Paradoxalmente, a “desprivatização” da vida privada tem avançado na proporção directa em que a economia vai sendo privatizada tendencialmente até ao absoluto, e segundo a ideologia neoliberal (aliás, a negação do Estado), por um lado, e por outro lado essa privatização da economia vai levando a uma maior destruição da esfera privada do indivíduo. Uma pescadinha de rabo na boca.

A invenção e reivindicação constante de novos “direitos” não é muito mais do que uma forma que o cidadão (cada vez mais destituído da sua privacidade) encontrou para tentar compensar, de algum modo, a perda da sua privacidade (que ele pressente ou detecta a nível do seu inconsciente) através de uma afirmação radical, positiva e pessoal. Um novo “direito” é uma nova forma de afirmação egológica e identitária, que pretende compensar a perda crescente da privacidade dos cidadãos.

A desprivatização da vida pessoal do cidadão leva a que, fenómenos sociais semelhantes, que existiam também no passado recente (futebol, espectáculos, imprensa cor-de-rosa, boatos, mexericos, as rádio-novelas da década de 1060 e 1970, as telenovelas da década de 1980, etc.), ganhem hoje uma dimensão diferente que se caracteriza pela ausência crescente da distinção entre o público e o privado — naquilo a que o professor Adriano Moreira chama de “substituição actual do credo dos valores pelo credo do mercado”.

Hoje, quase tudo está sujeito ao mercado — até a dignidade e a liberdade da pessoa.

Esta sujeição avassaladora ao mercado está na base da desprivatização da vida pessoal e até íntima do cidadão que, por sua vez, induz à invenção de “direitos humanos” inéditos e ao conceito de  “direito à diferença” que compensem a intrusão abusiva do mercado na vida pessoal do cidadão.

Por isso é que a expansão do mercado, na economia, deve ser travada. E isto não tem nada a ver com a esquerda ou com a direita: antes, tem a ver com a necessidade da defesa da dignidade e da liberdade do indivíduo enquanto pessoa.

1 comentário:

  1. Talvez os fisiocratas nos possam dar uma ajudinha:

    http://historiamaximus.blogspot.pt/2014/08/a-fisiocracia-luz-do-seculo-xxi-uma.html

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