segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O conceito absurdo de “crime público”

 


O João Miranda escreve aqui um verbete com que estou de acordo embora por razões diferentes das dele. Ou melhor: estou de acordo com o João Miranda em relação a determinados princípios, embora não esteja de acordo com a teoria que o João Miranda desenvolve a partir desses princípios.

Por exemplo: ¿o que é “crime público”?

Se existe o conceito de “crime público”, é porque existe, em contraposição, o “crime privado”. E parece que, a existir o “crime privado”, este não é tratado como “crime público”. Ora, o crime é sempre público, ou então não é crime. “Crime público” é uma redundância!, um pleonasmo. É como “subir para cima” ou “descer para baixo”. Só podem coexistir “crime público” e “crime privado” se a Lei for esquizofrénica.

Qualquer crime propriamente dito pode ser denunciado por qualquer pessoa — não seria necessário que se criasse uma tautologia jurídica para esse efeito. Só não denuncia um crime, de que tenha conhecimento, quem não o quer denunciar: é uma questão cultural, e não propriamente jurídica.

Os legisladores — os políticos — pensam que podem mudar a cultura antropológica através da manipulação absurda da linguagem. Desejo-lhes muito sucesso!

Por outro  lado, estou de acordo com o João Miranda quando ele diz (por outras palavras) que a lei deve ser abstracta e universal, e que os factos não criam normas (embora as normas possam criar factos) — seguindo, aliás, o princípio da negação da falácia naturalista.

A teoria do João Miranda começa a descambar — porque o princípio de que partiu é logicamente válido — quando escreve o seguinte:

“[a tendência é transformar coisas odiosas em crime público, sem a mínima preocupação com a autonomia das vítimas]”

O que o João Miranda, de facto, pretenderia eventualmente dizer é o seguinte: “a tendência é transformar coisas odiosas em crime, sem a mínima preocupação com a autonomia das vítimas”.

O conceito absurdo e tautológico de “crime público” foi criado em um contexto de uma sociedade cada vez mais individualista e atomizada, e em nome da “autonomia” a que se refere o João Miranda.

“Um individualista é alguém que não sente o todo social, não sente a tradição, não sente a História e a Arte, e não sente até a paisagem do seu país. Um individualista é alguém incapaz de abnegação ou de qualquer sacrifício pelo seu país e pela sociedade em que vive.”

– Azorín

Ou seja: autonomia = individualismo. E vem daí o absurdo de “crime público” em contraposição ao conceito de “crime privado” que não existe.

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