quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A Esquerda, e a ordem da desordem (2)

 

No seguimento do verbete anterior acerca de um artigo do José António Saraiva, temos o fenómeno da proliferação das tatuagens como exemplo da contradição da contemporaneidade marcada pela Esquerda dita “libertária”. A tatuagem é simultaneamente um mimetismo (uma moda) e a negação do mimetismo (a negação da moda). O problema é que, por natureza, uma coisa ou um facto não podem ser e não-ser ao mesmo tempo.

tatooQue a tatuagem é uma moda (um mimetismo), qualquer pessoa pode verificar. A negação do mimetismo radica na especificidade da tatuagem (as características da tatuagem que se querem únicas) com que se pretende marcar o indivíduo como único e irrepetível.

A singularidade do ser humano — da pessoa — é um legado da cultura cristã. Segundo a cultura cristã (e estóica), a pessoa é única e irrepetível. Mas enquanto o Cristianismo esteve fortemente presente na cultura antropológica, não era necessário ao individuo afirmar veemente- e exteriormente a sua singularidade: fazia parte da cultura a assunção cultural, espiritual e interiorizada dessa singularidade; esta estava implícita na cultura antropológica. Não passava pela cabeça de um cidadão, apenas há 30 anos, colocar em causa o princípio da singularidade da sua pessoa à luz dos princípios cristãos.

Paradoxalmente, com a subjectivização jurídica e cultural do “indivíduo” (a sobreposição e o domínio do Direito Positivo em relação à cultura antropológica e à tradição), a singularidade do indivíduo é colocada em causa porque deixou de existir o esteio (a base) cultural da tradição cristã da singularidade da pessoa (do ser humano). Aquilo que estava implícito na cultura antropológica marcada pelo Cristianismo (a singularidade do ser humano), deixou de estar em função do desvanecimento da cultura cristã.

À medida em que a sociedade se atomiza (o indivíduo é transformado em um átomo, desligado do Todo social, por força da arbitrariedade política de Esquerda que determina o Direito Positivo), acentuando o individualismo egocêntrico (porque existe um tipo de individualismo saudável, ligado ao Todo social e marcado exactamente pela cultura cristã), os valores da singularidade da pessoa deixam de ser espirituais e passaram a necessitar de uma afirmação física, exteriorizada e chã. Aquilo que era interior ao indivíduo (a afirmação espiritual e simbólica da singularidade da pessoa) passou a ser-lhe exterior (a necessidade de sinais físicos e exteriores para a afirmação dessa singularidade).

Os símbolos — que são característicos humanos — foram (com a tatuagem, mas não só) substituídos por um tipo de sinalética que é comum ao mundo animal. A tatuagem é menos um símbolo do que um sinal; é um sinal contemporâneo e pós-cristão da afirmação da singularidade da pessoa. Um símbolo não se muda sem que se mude o que ele representa (o seu significado); um sinal pode ser alterado arbitrariamente e mantendo-se o seu significado — e o significado da tatuagem é a afirmação exterior (e não necessariamente interior e espiritual) da singularidade da pessoa que a usa. Neste sentido, a tatuagem é um sinal (como os animais irracionais também têm os seus sinais) e não um símbolo: o símbolo carece de uma experiência espiritual que caracteriza a pessoa.

É neste sentido que a tatuagem é simultaneamente um mimetismo e a negação do mimetismo. É simultaneamente um mimetismo da espécie (da sociedade) e o distanciamento do indivíduo em relação à espécie. Na sociedade cristã também podemos falar de um mimetismo da singularidade humana, mas tratava-se de um mimetismo espiritual e de valores que não necessitava de uma exteriorização urgente e ostensiva.

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