sábado, 2 de julho de 2016

O Anselmo Borges e a privatização da religião

 

A privatização da religião — a remessa do culto religioso para os lares privados — é uma característica do protestantismo, em contraponto ao catolicismo tradicional. O catolicismo sempre celebrou a religião em locais públicos e em comunidade alargada.

Os primeiros cristãos celebravam a Eucaristia em casas particulares, com todos à volta da mesma mesa; ali, pela primeira vez na história, escravos e senhores sentaram-se uns ao lado dos outros. De acordo com o Novo Testamento, "nem sequer era o presbítero que presidia à celebração, embora pouco a pouco se tenha imposto que o presidente da Eucaristia fosse aquele que presidia à comunidade, talvez para aprender que devia exercer a autoridade não impositivamente, mas igualitariamente, e procurando o máximo de comunhão possível".

Quando os cristãos se tornaram multidão, foram necessários locais amplos, o latim deixou de ser entendido pelo povo, os assistentes já não participavam, com o celebrante de costas e à distância e as pessoas a fazerem "outra coisa" (rezar o terço...) enquanto "estão na Missa", atentos ao momento da "consagração" e, depois, alguns vão receber a hóstia. Tudo se centrou no culto da hóstia, "totalmente separado do gesto do partir, partilhar o pão". Da refeição passou-se a um acto de culto, com uma deturpação fundamental da Eucaristia: "Separar completamente a matéria (pão e vinho) do gesto (partilhá-los)", quando "partir o pão significa compartilhar a necessidade humana (da qual o pão é símbolo primário) e passar a taça é comunicar a alegria, da qual o vinho é outro símbolo humano ancestral". O corpo e o sangue são a pessoa e a vida de Jesus vivo.”

Anselmo Borges

1/ Convém dizer o seguinte: os historiadores (Boak, Russell, MacMullen, Wilken) apontam para uma população total de cerca de 60 milhões de pessoas em toda a área do império romano, após a crucificação de Jesus Cristo. O Cristianismo, então nascente, é considerado um fenómeno sociológico, que passou de 1.000 seguidores (no total) no ano 40 d.C., para 7.500 no ano 100 d.C., 218.000 no ano 200 d.C., e seis milhões no ano 300 d.C..

Quando as comunidades cristãs atingiram as muitas centenas de milhares de pessoas, o comunitarismo de que fala o Anselmo Borges deixou de ser possível, em termos práticos, nas diversas comunidades cristãs no império romano.

Ou seja, o comunitarismo cristão do “tudo em comum”, segundo o Anselmo Borges, só foi praticamente possível enquanto a população cristã total, e em todo o império romano, era apenas de alguns milhares — no século I da nossa Era.

Comparar as comunidades dos cristãos do século I, por um lado, com a realidade do século III, por outro lado e por exemplo, ou com a realidade actual — como faz o Anselmo Borges —, é um sofisma; e só se compreende esse sofisma do Anselmo Borges por má fé, porque se trata de um professor universitário. Por um lado, parece que o Anselmo Borges defende a remessa do culto cristão para as casas particulares; e por outro lado, o Anselmo Borges não tem em conta o aspecto místico da Eucaristia e só valoriza o aspecto político da repartição do pão e do vinho: para o Anselmo Borges, a Eucaristia é um rito estritamente político.

2/ O Anselmo Borges critica o “culto da hóstia” — como se pudesse existir religião propriamente dita sem culto. “Culto” vem de “cultura”. Sem cultura não há religião nem civilização. Encarar o “culto da hóstia” como coisa negativa é detractar a religião cristã — para além de retirar da Eucaristia o seu aspecto místico.

3/ Na Idade Média, antes da Reforma e da Contra-Reforma que tornaram o Cristianismo mundano, a comunhão eucarística nas paróquias efectuava-se na Páscoa, no Natal e no Pentecostes — emulando, aliás, Jesus Cristo que celebrou a Eucaristia uma só vez e na Páscoa. Muitas paróquias só comungavam na Páscoa; e a comunhão precisava de ser preparada com antecedência, pelo jejum, pela abstinência, e pela confissão (e a confissão era pública: o confessionário só surgiu no século XVI). E a comunhão eucarística terminava com a festa na paróquia.

A festa que se seguia à Eucaristia comunitária da Páscoa, nas paróquias, era muitas vezes realizada na própria nave da igreja (não existia outro espaço comunitário acolhedor), com um jantar comunitário de cordeiro Pascal ou coisa parecida.

Com o puritanismo protestante, e a imitação da Igreja Católica (da Contra-Reforma) em relação ao protestantismo, levou a que um acto ritual (a Eucaristia colectiva) que se realizava poucas vezes por ano, passou a realizar-se todos os Domingos, retirando-lhe a índole excepcional que tinha nos séculos anteriores.

4/ A ideia do Anselmo Borges segundo a qual a missa medieval só se realizava em latim, é falsa.

No fim da comunhão do sacerdote, a missa medieval continuava com orações em língua indígena — aquilo a que os ingleses chamavam de “bedes” e os franceses de “prone” —, orações ditas na própria língua em intenção da comunidade, familiares, amigos e inimigos, pelos vivos e pelos mortos. Portanto, é falso que a missa medieval fosse toda ela rezada em latim.

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