quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Liberdade, autoridade, e o Integralismo Lusitano

 

“O programa do Integralismo Lusitano irradia crença e política: defende a tradição inquebrantável e o culto do passado como os melhores mestres do presente.

Preconiza uma monarquia pré-constitucional, baseada na religião, na autoridade e no corporativismo, é nacionalista, tradicionalista, Católico Apostólico Romano, privilegia a Família, a sociedade e a Nação sobre os membros que a constituem; é defensor da representação corporativa, dos interesses sobre a representação política, subordinador da liberdade à autoridade, do progresso à ordem, do concreto ao abstracto.”

1/ Para que a liberdade seja restringida ou subordinada à autoridade, segue-se que tem que existir uma elite que se considera, ela própria, livre para restringir a liberdade da esmagadora maioria. O problema que se coloca é o de saber quais são os critérios que regem a liberdade dessa elite na imposição das restrições da liberdade à maioria.

Este problema não é de hoje: sempre existiu, desde o tempo de Platão. Em primeiro lugar, temos que saber o que significa “liberdade” e “autoridade”.

2/ A autoridade exclui o uso de meios exteriores de coacção: quando se usa frequentemente a força bruta, então devemos concluir que a autoridade falhou. O problema dos integralistas lusitanos é que, em geral, confundem autoridade com autoritarismo.

Por outro lado, a autoridade não é compatível com a persuasão (que é uma característica da democracia representativa), porque a persuasão pressupõe igualdade ou paridade no processo de argumentação. Quando argumentamos, como eu faço aqui, a autoridade é colocada entre parêntesis. Por isso é que o povo diz que “satisfações são cagalhões”.

Portanto, a autoridade é uma forma de estruturação e de inter-relacionamento social que se opõe à coacção pela força bruta do Estado e à persuasão por intermédio da retórica.

3/ Segundo essa definição, podemos conceber a autoridade natural: por exemplo, a autoridade dos pais sobre os filhos. Essa autoridade não pode ser violenta (autoritarismo), sob pena de falhar enquanto autoridade. Mas também não pode ser baseada na persuasão e na argumentação, porque a experiência pessoal de um pai ou de uma mãe não são facilmente transmissíveis a uma criança através da retórica: tem que se basear na pedagogia (educação) que implica a existência da disciplina, mas sem recorrência (pelo menos, sistemática) à força bruta.

Outro tipo de autoridade natural é a que se exerce dos velhos sobre os novos, porque os velhos têm mais experiência de vida. Tal qual aconteceu com a autoridade dos pais sobre os filhos, este tipo de autoridade também está a desaparecer na nossa sociedade.

4/ Fora do âmbito da autoridade natural, e já nas relações sociais, o problema da autoridade só se resolve com a ética que, por sua vez, implica a existência de um sistema de educação que tenha fortemente em consideração essa ética. E como não é possível qualquer civilização sem uma religião propriamente dita (transcendental), essa ética deve ter em conta a religião predominantemente cristã (não nos podemos esquecer que, mal ou bem, hoje, no nosso país, o Cristianismo não é só catolicismo, embora o catolicismo deva ser privilegiado pelo Estado português).

Essa ética, sendo cristã, tem que se basear no conceito cristão de pessoa que assume uma dimensão absoluta.

Ou seja, o conceito de “indivíduo como valor em si” é de origem cristã. O problema é que o conceito de pessoa foi adulterado pelo Iluminismo e pela maçonaria, quando se passou a privilegiar a liberdade negativa em detrimento da liberdade positiva que, antes das revoluções inglesa e francesa, existia universalmente integrada nos grémios profissionais e nas guildas1 .

5/ Hoje ainda existem, na nossa sociedade, grémios que não obedecem a princípios democráticos. Por exemplo, os sindicatos são associações não democráticas de cidadãos (e muito bem!, a sua existência). Não é por acaso que quem critica os sindicatos são os liberais. Portanto, a tradição da representatividade não democrática não morreu. Outro exemplo são as associações patronais que também defendem os seus interesses particulares. Os próprios partidos políticos são movimentos não democráticos, embora proclamem a defesa da democracia — porque o objectivo último de um partido político é conseguir 100% dos votos e, por isso, negar a própria essência da democracia representativa.

6/ O problema da autoridade, na nossa época, é a sua característica que se opõe à persuasão. Para que a necessidade de persuasão seja reduzida ao mínimo, a ética tem que ser interiorizada no futuro cidadão desde tenra idade, e para isso a ética tem que ser, em si mesma, racional, por um lado, e por outro lado, terá que ser objecto de ensino privilegiado na escola que é um espaço pré-político, tradicional e conservador. Por exemplo, as relações entre professor e aluno devem ser análogas à da autoridade natural que existe entre pai e filho.

O facto de uma ética ser racional tem que ter em consideração a religião, porque a religião faz parte da natureza humana. Ostracizar a religião na educação é, por isso, irracional. O homem moderno não é a-religioso: antes, por razões culturais, reprime a religião e relega-a para o inconsciente individual e colectivo.

Se não for possível enraizar os valores da ética no absoluto, todas as reflexões são inúteis, os argumentos e a persuasão deixam de fazer qualquer sentido, e a lógica não existe.

7/ Não é “a liberdade que se deve subordinar à autoridade”, porque aqui a liberdade é reduzida à liberdade negativa — o que é um erro. Sem a liberdade positiva não é possível qualquer tipo de autoridade.

O filósofo Isaiah Berlin (in “Duas Concepções de Liberdade”) contrapõe a liberdade negativa — a liberdade de se exprimir sem censura, por exemplo — à liberdade positiva — que é o poder de tomar parte nas decisões públicas (por exemplo, nos grémios ou guildas) e de exercer a autoridade em geral. Naturalmente que estes dois aspectos da liberdade — negativa e positiva — devem sempre coincidir: aquele que exerce o Poder não pode querer anular-se a si próprio.

Portanto, a ideia segundo a qual “a liberdade se deve subordinar à autoridade” não tem nada a ver com a tradição cristã e católica: antes é uma tendência cultural e política revolucionária e absolutista que se iniciou na Europa com os teóricos da Razão de Estado e com Hobbes (“Leviatão”). A liberdade propriamente dita (negativa + positiva) só pode ser concebida no contexto de um princípio de autoridade aceite.

8/ O Rei é um princípio e um elemento natural de autoridade. Mas o mesmo já não se passa com o clero e com a nobreza: esta é objecto de escolha do Rei e aquela objecto da escolha do Papa. Como dizia Fernando Pessoa, o escol de uma sociedade é uma selecção de indivíduos, e não uma classe política ou uma corporação. Sempre foi assim, desde o tempo de D. Afonso Henriques até ao início do século XVI, quando começou a decadência.

Nota
1. (não gosto da palavra “corporação”, porque, com o fascismo italiano, assumiu um significado desviado e deturpado do original; prefiro utilizar as palavras “grémio” ou “guilda”).


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