quinta-feira, 10 de julho de 2014

A trapalhada argumentativa do Rolando Almeida

 

Vindo de um professor “encartado” de filosofia, este verbete consegue surpreender-me; e quanto mais leio textos de professores “encartados” de filosofia, mais valor dou ao senso-comum.

Quando se diz (no referido verbete), por exemplo, que existiu uma intencionalidade, da minha parte, em ganhar “share no Google” ao escrever este meu verbete, essa opinião é inqualificável senão à luz de um cinismo de um interlocutor que me pergunta:

“¿O que é que tu pretendes ganhar com a tua posição ideológica?”

— como se toda a opinião tivesse uma motivação utilitarista. Como escreveu o poeta Óscar Wilde, ele há gente que conhece o preço de tudo e desconhece o valor do que quer que seja.

Este blogue não precisa do Rolando Almeida para ter tido cerca 2.400.000 visitas em sete anos.


1/ Uma série de falácias lógicas na argumentação do Rolando Almeida

O Rolando Almeida incorre em uma falácia do espantalho quando me atribui conclusões de raciocínio que eu não defendi. Em primeiro lugar, ele cita-me:


“O altruísmo — ao contrário do que o professor Rolando Almeida e Peter Singer pensam — não tem origem em um cálculo racional, mas antes tem origem na sensibilidade ética adquirida pela educação (mas não o tipo de educação que o professor Rolando Almeida dá aos seus alunos).”

A seguir vem a falácia do espantalho do Rolando Almeida:

“Esta é uma perspectiva relativista já que então os princípios morais correctos são o resultado da educação moral. Se formos educados a aceitar o infanticídio, então, pelo mesmo critério, nada há de errado no infanticídio. Como o Orlando foi educado da forma X tudo o que escapa ao seu modelo é errado e deve ser banido. O problema é que eu ou qualquer pessoa pode pensar como o Orlando e aí sim, está a defender-se uma perspectiva relativista. X é correto se eu fui educado a aceitar X e é errado se eu fui educado a não aceitar. Como não fui educado a aceitar o aborto seja qual for a circunstância, então não posso considerar em qualquer circunstância que o aborto não envolva um problema moral.”

Vemos aqui a eliminação sofista de qualquer critério de verdade. Alegadamente, e segundo o Rolando Almeida, se eu defendo que o infanticídio é errado porque adquiri uma sensibilidade ética através da minha educação, então segue-se que, segundo a minha posição, a defesa do infanticídio é errada e deve ser banida; e, segundo o Rolando Almeida, esta minha posição é “relativista” (?).

Para o Rolando Almeida não existe um critério de verdade, e depois diz que eu é que sou o “relativista”. Para ele, defender o infanticídio, ou não o defender, são apenas posições que qualquer pessoa pode defender legitimamente, do ponto de vista ético; e o “relativista” parece ser, segundo ele, aquela pessoa que não aceita uma posição ética e simultaneamente a sua contrária.

2/ O recurso do Rolando Almeida a subjectivização da ética, ou o recurso a uma putativa intencionalidade

O Rolando Almeida escreve o seguinte:

“O Orlando faz ainda mais confusões. Ele pensa que Peter Singer (e eu, já agora) defende que se deve abortar e que se deve matar as criancinhas. Isto é revelador do parco conhecimento do que são teorias éticas. Desconheço filósofos que defendam o aborto como moralmente correcto. O que conheço são filósofos que defendem que o aborto em determinadas circunstâncias não é imoral, o que é diferente.”

Vejamos a seguinte proposição, que aparentemente poderia ser subscrita por Rolando Almeida:

“Em determinadas circunstâncias, o infanticídio (o assassínio de crianças nascidas) pode não ser imoral; o que não é a mesma coisa que afirmar que o infanticídio é moralmente correcto”.

A ética defende valores que definem a moral; e os valores morais devem ser universais, fundamentados racionalmente, ter uma validade intemporal e serem identificáveis nas suas características principais.

Sem uma hierarquia dos valores, qualquer pessoa poderia dizer que considera um determinado valor mais importante do que o resto do mundo o considera. Portanto, tem que existir um critério de verdade dos valores que seja universal, por um lado, e que esse critério seja passível de fundamentação racional, por outro lado.

Cada cultura procede de uma selecção entre os valores que lhe são conhecidos (por exemplo, através da educação). Se os valores existem predeterminados objectivamente, então reúnem-se as condições da ética: os valores possuem uma validade universal, são intemporais e são identificáveis nas suas características principais. O problema que se coloca a partir daqui é saber qual é a posição hierárquica de cada um dos valores entre si.

Afirmar que, “em determinadas circunstâncias, não é imoral defender o infanticídio”, não é só afirmar que o valor da vida humana pode ser preterida em “determinada circunstâncias” em favor de outros valores, mas é sobretudo afirmar que, em “determinadas circunstâncias”, se justifica o poder — muitas vezes até discricionário e em forma de acto gratuito — do mais forte sobre o mais fraco.

Por outro lado, não interessa saber o que Peter Singer “sente” em relação ao aborto e/ou ao infanticídio. A ética não é subjectiva — ao contrário do que o Rolando Almeida parece pensar. Os valores da ética são objectivos: por exemplo, o valor da justiça vale por si, e este valor pode ser compreendido pelo ser humano. Se deduzíssemos o significado do valor da justiça a partir da sua utilidade ou oportunidade política, não existiria justiça propriamente dita.

Portanto, a justiça não pode depender de algo que não esteja já incluído no seu significado. Os valores não são iguais, ou seja, existe uma hierarquia de valores.

Por exemplo, o valor do altruísmo está acima do interesse próprio. O valor do amor ao próximo está acima do valor da credibilidade. Diz Nicolau Hartmann: “o bem é a orientação para o valor superior; o mau, no entanto, é a orientação para um valor inferior”. Portanto, o mal e o bem não são definíveis em si mesmos: antes dependem da situação e da orientação concreta da decisão. Não são os valores que são relativos (ao contrário do que parece pensar o Rolando Almeida): antes, são as situações em miríade que são diferentes e relativas. Mas as situações particulares e relativas não retiram a objectividade aos valores da ética, nem transformam um acto moralmente negativo em uma espécie de “acto tolerável em determinadas circunstâncias”.

3/ Aquilo que Peter Singer ou o Rolando Almeida “sentem” (subjectividade), não é chamado para esta discussão. A “intencionalidade” não é propriamente um argumento ético; “de boas intenções esta o inferno cheio”.

4/ O Rolando Almeida escreve o seguinte:


“O Orlando fala ainda em “desenvolvimento da sensibilidade moral” e pensa que esse desenvolvimento só é possível pela educação. Ora isso é errado precisamente porque a educação pode desenvolver sensibilidades morais profundamente irracionais, como apedrejar mortalmente mulheres que recusam casar com maridos impostos pela comunidade.”

Parece que, para o Rolando Almeida, a lapidação de mulheres é (também) produto do “desenvolvimento de sensibilidade moral” através da educação. Para ele, a “sensibilidade moral” também pode traduzir-se, por exemplo, na lapidação de mulheres. Para ele, tanto é “moralmente sensível” um indivíduo que apedreja uma mulher como aquele que não o faz. Portanto, o que faz falta ao Rolando Almeida é redefinir o seu conceito de “sensibilidade moral” — porque a noção que ele tem de “sensibilidade moral” está errada. Por exemplo, um psicopata não tem sensibilidade moral nem empatia com outrem. Mas parece que, para o Rolando Almeida, um psicopata tem apenas um outro tipo (diferente) de sensibilidade moral.

5/ O Rolando Almeida escreve o seguinte:

“Mas o Orlando acerta quando fala em “desenvolvimento moral”. O erro está em que o Orlando não percebe que esse desenvolvimento pode ser impulsionado pela reflexão crítica e racional.”

A “reflexão crítica” tem que assentar em pressupostos racionais; e não é racional a defesa do infanticídio, em qualquer circunstância — ao contrário do que defende Peter Singer. E não é racional que um professor de filosofia diga aos seus alunos que Peter Singer, que objectivamente defende o infanticídio (Peter Singer defende o “direito” de uma mulher matar o seu filho já nascido), é um “altruísta”.

Um professor de filosofia que diz aos seus alunos que Peter Singer é um “altruísta”, e que, explícita ou implicitamente, faz a apologia das ideias do autor australiano, não deveria caber no sistema de ensino português.


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