sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Depois de Boisguilbert e Adam Smith, só nos resta hoje a entropia do capitalismo (por culpa própria)

 

Eu escrevi um verbete com o título “A expansão da “ideologia de mercado” tem que ser travada”; mas isso não significa que eu seja contra o capitalismo e/ou contra o mercado. Pelo contrário, sou a favor do verdadeiro capitalismo, que não é o actual.

Olhemos para o exemplo da Hungria, que é um país capitalista que tem um imposto único e universal (IRS) de 16%, e tem a palavra “Deus” inscrita na sua Constituição.

O leitor Horta Nobre deixou o seguinte comentário no referido verbete: “Talvez os fisiocratas nos possam dar uma ajudinha”.

Vamos ver (como diz o cego): aquilo que se convencionou chamar hoje de “neoliberalismo” já não é o liberalismo de Boisguilbert, dos fisiocratas (por exemplo, Quesnay) e de Adam Smith (por ordem cronológica de evolução ideológica). Vou transcrever a tradução de um trecho de Boisguilbert (“Dissertation de la nature des richesses de l'argent et des tributs” – 1707, pág. 986):

(…) quem troca e rompe a cadeia das trocas destrói a terra que tem sob os seus pés, pois não apenas fará perecer o seu vizinho por causa desta cessação, mas causará a sua própria perda pessoal, deixando-o deste modo incapaz de reconstituir os seus aprovisionamentos de bens, o que lhe provocará a bancarrota e o fecho do seu estabelecimento”.

Conclui Boisguilbert, nas páginas seguintes, que deve haver uma intervenção do Estado na economia, a fim de que a luta entre os concorrentes seja igual e de que a retoma económica seja assegurada em caso de crise. Adam Smith defendeu uma posição semelhante à de Boisguilbert: o Estado está acima dos agentes económicos e financeiros em uma sociedade com uma economia dita “liberal”.

Ou seja, tanto Boisguilbert, como os fisiocratas e como Adam Smith (e a escola escocesa) colocaram a política acima da economia (e a ética acima da política) — ao passo que o neoliberalismo inverteu esta lógica ao colocar a economia e a finança acima da política e de uma ética universal. E por isso é que o neoliberalismo é tanto ou mais “revolucionário” (no sentido pejorativo) que o marxismo, porque reduzem toda a realidade ao poder da economia.


É certo de que o princípio segundo o qual “o mercado consegue a maior felicidade para o maior número” (utilitarismo) surge pela primeira vez com Boisguilbert: mas Boisguilbert era Jansenista 1, ou seja, o utilitarismo de Boisguilbert era concebido à luz de uma ética transcendental com origem em Deus — o que não aconteceu mais tarde com Bentham e Stuart Mill, que retiraram “Deus” da equação ética aplicada à sociedade em geral e à economia em particular. Por isso é que Karl Marx dizia que o utilitarismo era “uma moral de merceeiro inglês”, que já pouco tinha a ver com o utilitarismo de Boisguilbert e dos fisiocratas.

Ou seja, só é possível conceber o capitalismo em uma sociedade que se rege por uma ética transcendental.

Quando retirámos essa ética transcendental do liberalismo económico, embocámos no actual neoliberalismo. Essa ética transcendental, de Boisguilbert, dos fisiocratas e até de Smith 2 , transformou o Estado no sucedâneo natural do príncipe como intermediário entre Deus, por um lado, e a sociedade em geral, por outro lado — ou seja, o Estado de Boisguilbert e de Smith estava acima dos agentes económicos e financeiros — o que não acontece hoje, porque o “Estado exíguo” 3 soçobrou face ao poder económico e financeiro mediante o colapso de uma ética transcendental universal.


É certo que os fisiocratas fizeram uma confusão desgraçada entre “fecundidade natural” (o produto da terra) e “produtividade económica” (aversão à indústria). E essa foi quiçá a principal divergência da escola escocesa e de Adam Smith em relação aos fisiocratas. Mas a Bolsa é também um mercadoKarl Marx, por exemplo, investiu seriamente na Bolsa de Londres e ganhou dinheiro com isso. A Bolsa não tem que ser necessariamente um local onde apenas se pratica a especulação financeira que surgiu nos Estados Unidos depois de a Federal Reserve ter sido privatizada — cá está o afastamento do Estado da vigilância da economia. Não foi isto que Adam Smith defendeu.

O problema não é Bolsa, entendida em si mesma. O problema é “aquilo para que serve a Bolsa”.

Olhemos para o exemplo da Hungria, que é um país capitalista que tem um imposto único e universal (IRS) de 16%, e tem a palavra “Deus” inscrita na sua Constituição. A Hungria é um exemplo do que deve ser o capitalismo; e a Hungria também tem Bolsa: só que na Bolsa húngara não se faz o que se quer, nem está sujeita aos humores arbitrários do “mercado internacional”, e por isso é que a União Europeia embirra com esse país.

Notas
1. O cardeal Mazarino dizia que o Jansenismo era um “Calvinismo refervido”.
2. Karl Marx escreveu de forma irónica, na sua obra “Sagrada Família”, que “Adam Smith polemizava algumas vezes contra os capitalistas”.
3. Parafraseando o professor Adriano Moreira.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Neste blogue não são permitidos comentários anónimos.