domingo, 27 de dezembro de 2015

O jornal Público e a crise da imprensa diária

 

Eu não queria ser (actualmente) responsável pela área comercial de um jornal diário. A demonstração disto está neste artigo publicado no jornal Público por uma criatura que dá pelo nome de Alexandra Lucas Coelho.

Segundo a escriba, o corolário da crise da imprensa diária desemboca na necessidade de deixar de a imprensa ser um negócio, para ser um instrumento de “responsabilidade social”. Esta posição explica, em parte, a crise do jornal a que eu chamo de jornal “Púbico”.

“A mudança histórica, então, seria deixarem de ser pensados como um negócio — propício ao prejuízo, a cada ano decepcionante para accionistas e desestabilizador para trabalhadores que vão perdendo condições — e serem tomados como responsabilidade social”.

Para não acabar de vez com os jornais (e a democracia)

Desde o surgimento da imprensa com Gutemberg, esta sempre foi a sobreposição do negócio e da “responsabilidade social”; mas a criatura pensa que o negócio deve ser descurado para que a imprensa pertença sobretudo a uma área de “responsabilidade social”. Esta posição é um decalque actualizado da lógica comunista, onde o facto de os jornais darem prejuízo era justificado pela “responsabilidade social” que era um eufemismo para “propaganda ideológica”.

Quando a criatura escreve que “o que está em causa é a própria existência de um jornalismo que contrarie abusos de poder e amplie o mundo, não menos”, refere-se certamente aos abusos de Poder com os quais ela não concorda — porque, nas ideologias ou religiões políticas, há sempre abusos de Poder que são por elas justificados.


Faço aqui um interlúdio para contar a história de um jornalista do jornal “Púbico” que ficou muito escandalizado com o Pedro Arroja porque, durante uma entrevista para um projecto de trabalho, o Pedro Arroja ter-lhe-ia perguntado se ele (o jornalista) investiria 1 milhão de Euros no tal projecto de trabalho. E o jornalista saiu indignado da entrevista. Se fosse eu o jornalista, e se eu pensasse que o projecto fosse mesmo bom, teria respondido da seguinte forma a Pedro Arroja: “O projecto é bom. Eu investiria nele 1 milhão de Euros ou mais, se os tivesse. Mas como não os tenho, estou disposto a investir 33% das minhas poupanças pessoais no projecto” (porque um bom investidor nunca coloca os ovos todos em um mesmo cesto).

Isto para dizer que a mentalidade dos jornalistas do jornal Púbico é, em geral, a do “proletário rico” — que é aquela pessoa que quer o melhor dos dois mundos: sendo proletária, não arrisca o seu dinheiro porque o risco é sempre dos patrões; mas não abdica das prebendas que só o risco pode eventualmente gratificar.


A crise da imprensa diária é o espelho da crise da sociedade.

Mas aqui, o termo “crise” (da sociedade) não tem o significado do grego kraisis, que significa “julgamento de uma disputa”, ou “faculdade de discernimento”: na ciência, a “crise” acontece quando as noções sobre o que assenta uma disciplina ou uma teoria são colocadas em questão (julgamento de uma disputa); na ordem moral, há crise quando o sujeito descobre que as suas motivações habituais de conduta não lhe parecem ser suficientes e, por isso, sofre com essa contradição (faculdade de discernimento).

A “crise da sociedade” significa aqui “degradação da sociedade” (degradação da qualidade da cultura intelectual e da cultura antropológica). A utilização sistemática de instrumentos tecnológicos não significa necessariamente “qualidade da cultura antropológica” — porque os gadgets tecnológicos passam a ser um fim em si mesmo, e não um meio de cultura.

Portanto, o problema da imprensa diária nunca será resolvido sectorialmente ou por si só. Vejamos o que escreve a criatura:

“Mas creio que a publicidade ainda podia ter um papel numa nova lógica de jornalismo enquanto bem público. Grandes empresas portuguesas gastam dinheiro e tempo com programas, projectos, fundações relacionadas com “responsabilidade social”. Se, como anunciantes, valorizarem um jornal de qualidade, o ângulo do lucro — quanto me compensa anunciar aqui — pode mudar para o ângulo da responsabilidade social — este jornal é importante para a democracia”.

¿Como é que se pode aferir, hoje, o que é um “jornal de qualidade”? Certamente que, para a escriba, o jornal Púbico é um “jornal de qualidade” que vai ser reestruturado devido a falência. Mas ¿será um jornal de qualidade?

Em princípio, uma qualquer coisa é “de qualidade” quando a maioria da população — os consumidores — lhe atribui valor.

Mas, por exemplo, na Alemanha nazi, os jornais faziam a propaganda ideológica nazi e eram considerados, pela maioria da população alemã, como sendo “de qualidade” porque lhes atribuíam valor. Portanto, nem sempre aquilo a que atribuímos valor é “de qualidade” (é bom). Mas o problema da sociedade actual é muito mais complexo do que o da Alemanha nazi, porque o critério de “qualidade” (o ser bom) pulverizou-se, por um lado, e tornou-se efémero e instantâneo, por outro lado.

O valor é a noção que traduz a passagem do desejo para o conjunto doutrinário e prático que constitui uma Moral; toda a moral é fundamentada em um conjunto de valores que são também abstracções representando o que se tem por desejável.

É em função do valor que definimos a qualidade de alguma coisa — e também a qualidade dos jornais.

Ora, numa sociedade em que o denominador comum dos valores se reduz a um menor múltiplo comum (que são conceitos muito gerais, como “democracia”, “liberdade”, etc.), torna-se quase impossível definir o que é “boa qualidade” — porque essa definição tem que ser aceite de forma muito alargada pela sociedade.

Não me venham dizer que a culpa da crise dos jornais diários é do FaceBook, do Google, etc.. A culpa é da crise — no sentido de “degradação” — da sociedade. E não há nada que os jornais diários, por si só, possam fazer contra essa degradação. O problema é político e geral. E não há inocentes: tanto a Esquerda neomarxista como a Direita neoliberal têm culpas no cartório.

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