sábado, 30 de janeiro de 2016

Anselmo Borges e o enigma de Deus

 

Anselmo Borges escreve o seguinte:

“É possível que Deus exista, mas também pode não existir. Ninguém pode dizer que sabe que Deus existe, mas também ninguém pode dizer que sabe que Deus não existe. Ninguém sabe se na morte encontramos a vida na sua plenitude em Deus ou se, pelo contrário, para cada pessoa tudo acaba na morte. Este é o grande enigma da vida de cada homem, de cada mulher”.

Anselmo Borges poderia ter escrito: “Este é o grande enigma da vida de cada ser humano”, englobando o homem e a mulher em uma mesma categoria. Mas o politicamente correcto exige que o homem e a mulher pertençam a espécies diferentes. Noutros tempos, dizíamos “Minhas senhoras e meus senhores!” por uma questão de boa educação; hoje, dizemo-lo por obrigação politicamente correcta.


Anselmo Borges erra quando confunde “enigma”, por um lado, e “mistério”, por outro lado.

Aliás, esse erro foi decalcado do livro do jesuíta a que se refere o Anselmo Borges no artigo. Quando estudei a História de Portugal no liceu, pensei que a expulsão dos jesuítas por parte do Marquês de Pombal tivesse sido um exagero; hoje tenho dúvidas se não teria justificação racional. Não é acaso que o papa-açorda Francisco é jesuíta.

Um enigma tem solução, por princípio; um mistério é insolúvel, à luz da razão humana.

O problema do homem moderno é o de que não aceita, por princípio, de que há coisas que não compreende (no sentido do racional determinístico) e nem nunca compreenderá: a ideia segundo a qual possam haver realidades ou fenómenos racionalmente inacessíveis ao ser humano é um sacrilégio modernista e cientificista.

Perante o Ser de Deus (e não a “existência” de Deus, porque Deus não “existe” da mesma forma que o Anselmo Borges), o ser humano debate-se com um mistério, e não com um enigma. Por isso é que a Igreja Católica tradicional fala do “mistério da fé”; talvez a Igreja Católica do papa-açorda Francisco, cientificista e secularista, passe a falar no “enigma da fé”.


A julgar pelo texto de Anselmo Borges, Deus é uma espécie de velho com barbas brancas que vive acima das nuvens, na companhia de S. Pedro que é o manda-chuva. Por isso é que, segundo o Anselmo Borges e o jesuíta autor do livro, “ou Deus existe, ou não existe”. “O ser de Deus não pode ser compreendido como a existência de um existente ao lado ou acima de outros existentes. Se Deus fosse um existente, estaria submetido às categorias da finidade, sobretudo ao espaço e ao tempo” (Paul Tillich).

“O espiritual é fundamental para mim; vou mesmo ao ponto de afirmar que não existe matéria, mas apenas espírito. (…) Aquilo que constitui o fundamento da realidade não é a matéria, mas um campo que, no entanto, não é material, representando, contudo, uma espécie de potencialidade. Um potencial que possui a capacidade de se materializar”. Quem escreveu isto não foi o abade da minha paróquia: foi Hans-Peter Dürr 1.

A ciência actual não pode ser materialista; ou não é ciência. Mas a verdade é que o naturalismo continua a ser o esteio da ciência que impõe uma cultura materialista.


Finalmente, Anselmo Borges confunde “dogma religioso” com “dogma cientificista” — colocando os dois tipos de dogma no mesmo plano ou nível.

É certo que o cientificismo naturalista é uma espécie de religião, mas trata-se de um monismo, imanente e materialista; é uma espécie de religião que apenas se foca em uma pequena parte da Realidade.

A Bíblia é um livro com que os primeiros cristãos transmitiram as suas experiências com Deus sob a forma de imagens, mitos e metáforas. As imagens dizem mais do que as palavras, porque conseguem superar frequentemente a contradição entre o individual e o universal. Por exemplo, a arte: a arte começa onde a linguagem acaba. A religião utiliza a arte das imagens para criar a símbolos intersubjectivos que formam a comunidade dos crentes.

Para que estas experiências, e as respectivas imagens (símbolos) que as representam, possam fundar uma comunidade, aquelas são formuladas em dogmas. No sentido religioso propriamente dito — mas não no sentido cientificista ou naturalista —, um dogma é uma afirmação sobre a Realidade que está para além daquilo que é alcançável através da linguagem. O dogma religioso é a tradução do modus ponens da experiência secular religiosa dos cristãos: é uma espécie de “ajuda racional”.

Ou seja, o dogma religioso é um dogma positivo; o dogma cientificista é um dogma negativo (a negação do Ser). Colocar os dois tipos de dogma no mesmo plano de análise, é uma estupidez.


Nota
1. “Gott, der Mensch und die Wissenschaft”, 1997

Sem comentários:

Enviar um comentário

Neste blogue não são permitidos comentários anónimos.