sábado, 17 de janeiro de 2015

Os liberais Carlos Abreu Amorim, Ana Gomes e Boaventura Sousa Santos

 

Ontem à noite vi o debate entre o Carlos Abreu Amorim e Ana Gomes na TVI24. As posições de cada um face ao terror do Charlie Hebdo são baseadas nas posições clássicas do liberalismo de direita, por um lado, e no liberalismo de esquerda (também chamado “libertarismo” na Europa, e nos Estados Unidos de “liberalism”).

O liberalismo de direita — ou seja, para o Carlos Abreu Amorim — consiste na crença numa só verdade universal segundo a qual todas as pessoas têm direitos (jurídicos) iguais 1. E embora existam culturas diferentes, todas elas estão em conformidade com essa verdade universal única 2  — incluindo o Islão. Para as pessoas da direita-liberal, o "pecado" maior é a negação esta verdade universal única, e o seu corolário é o de que todas as pessoas são capazes de seguir essa verdade.

O libertarismo de esquerda  3 — ou Ana Gomes, ou Boaventura Sousa Santos — consiste na crença numa igualdade substantiva e moral da humanidade (relativismo moral: todas as culturas são igualmente válidas). O liberalismo de esquerda rejeita a noção de verdade universal única dos liberais de direita, porque essa verdade seria superior às outras verdades, e porque as pessoas que acreditem nessa verdade se sentiriam superiores e tentariam dominar as outras (marxismo cultural e a noção de “domínio”).

Para o liberalismo de esquerda, todas as verdades, todas as pessoas, todas as culturas, todas as religiões (incluindo a Macumba, o Satanismo e o Candomblé] têm que ser tratadas de forma igual. Para a esquerda liberal, o "pecado" mais grave é imaginar que alguém possa estar na posse da verdade e que possa esperar que outras pessoas dêem a anuência a essa verdade.

Corolário: a direita liberal pensa que a esquerda liberal comete o maior "pecado", e vice-versa. Mas é o princípio da igualdade que lhes é comum.


Para mim, a única igualdade que existe é a igualdade ontológica, e não a igualdade jurídica do Carlos Abreu Amorim — é a igualdade natural do ser humano que é importante. A igualdade ontológica é aquela que abrange todos os seres humanos, nascidos ou nascituros. É a igualdade do ser humano enquanto tal, possuidor de um ADN único: nada tem a ver com direitos adquiridos ou com privilégios concedidos pela sociedade que podem ser retirados a qualquer momento, se a própria sociedade ou a nação o exigir. A própria propriedade privada pode ser expropriada se o proprietário não corresponder com as obrigações inerentes aos privilégios que lhe foram concedidos pela nação ou sociedade 4.


Laicismo e secularismo

Fazendo alusão a este texto acerca da posição de Boaventura Sousa Santos, há que distinguir entre laicismo, por um lado, e secularismo, por outro lado. As palavras têm muita importância na definição real de conceitos.

No laicismo, o Estado desempenha uma função de exclusão dos símbolos religiosos da praça pública, remetendo a religião e os seus símbolos para o domínio estritamente privado [França e, pelo menos parcialmente, Carlos Abreu Amorim].

O secularismo – do latim “secular”, que significa “temporal” – distingue-se do laicismo por ser muito tolerante em relação à visibilidade pública da religião, e permitir a exposição dos símbolos religiosos no domínio público [Ana Gomes e Estados Unidos].

Portanto, há aqui uma inversão estranha e paradoxal de valores: o Carlos Abreu Amorim parecer ser laicista, e a Ana Gomes parece ser secularista — quando a tradição socialista europeia e francesa é laicista, e quando a tradição liberal de Stuart Mill é secularista.

O laicismo, que o Carlos Abreu Amorim parece defender, é uma forma de religião de Estado (França) no sentido de “religião política”, segundo o conceito de Eric Voegelin.

O secularismo, que a Ana Gomes parece defender, é a abstenção de interferência do Estado em relação às religiões, e vice-versa (Estados Unidos). O Carlos Abreu Amorim, liberal de direita, defende posições revolucionárias (no sentido do republicanismo francês de 1789 que não significa necessariamente “democracia”); a Ana Gomes, liberal de esquerda, defende posições mais tradicionais. Paradoxo!

A minha posição aqui é diferente das dos dois: é a do respeito pela História e pela cultura antropológica da sociedade em que vivemos em um determinado momento, o que significa que há religiões “mais iguais que outras”. Ou seja: “em Roma, sê romano”.

Por exemplo, sendo eu católico, se eu for viver para a Rússia aceitarei perfeita- e pacificamente a ideia segundo a qual a religião dominante e mais importante naquele país — por razões históricas e culturais — é a cristã ortodoxa. Ou se eu for viver para a Indonésia, aceitarei sem qualquer problema que o Islão é a religião mais importante daquele país e, portanto, que a minha religião (a católica) é, naquele contexto, menos importante do ponto de vista da sociedade indonésia e da cultura antropológica do país.

Portanto, não concebo que as religiões sejam todas iguais: depende da história e da cultura antropológica de cada país (e isto para além da análise valorativa e filosófica que se possa fazer delas, o que não vem agora ao caso). Defendo um secularismo racional (porque respeita a realidade histórica e cultural dos povos per se), e não um secularismo igualitarista (como acontece nos Estados Unidos).

Liberdade de expressão

A liberdade é o poder de obedecer à lei moral — muito mais do que obedecer apenas à norma jurídica.

Se o laicismo maçónico é, segundo o Carlos Abreu Amorim, a religião de Estado em França (a religião mais importante do país), então segue-se que as caricaturas do Charlie Hebdo foram, na maioria dos casos (salvo as injúrias feitas pelo jornal em relação a pessoas em concreto, ou ad Hominem) legítimas, para além de serem legais. O laicismo francês e maçónico defende a sua religião contra as outras religiões; portanto, o Charlie Hebdo é legítimo na sociedade francesa do laicismo subsumido como religião de Estado — porque é a lei moral laicista que define a liberdade de expressão naquele país.

A norma jurídica pode ser mudada simples- e discricionariamente e a qualquer momento pelo positivismo do Direito. A norma jurídica — na medida em que depende do conceito abstracto de "Vontade Geral", e na medida em que pode ser mudada quase arbitrariamente pelas elites ou ruling class de um determinado país — não pode ser a bitola da liberdade, e por extensão, da liberdade de expressão.

A lei moral, em França, existe em função do laicismo maçónico como religião de Estado. E é essa lei moral, entendida nos seus contornos essenciais, que define o conceito de “liberdade de expressão” na sociedade francesa. É neste contexto de laicismo como religião de Estado que se torna legítimo insultar qualquer outra religião com excepção do laicismo (como é óbvio).

Em uma sociedade em que a lei moral passa pelo respeito pelo outro — ou seja, em uma sociedade em que exista uma igualdade ontológica e não meramente jurídica —, não se insultam as pessoas religiosas 5, sejam quais forem — o que não significa que todas as religiões presentes na sociedade sejam consideradas iguais.

Assim, houve um tempo em que o Islão foi tolerante com outras religiões monoteístas (as “religiões do livro”), embora se considerasse que o Islão era a religião mais importante do que as outras religiões e nos países de maioria islâmica. Neste sentido, esse Islão era mais racional do que é hoje.

Conclusão: 1/ ou Portugal adere ao laicismo religioso que o Carlos Abreu Amorim defende; 2/ ou adere ao secularismo igualitarista da Ana Gomes; 3/ ou adere ao secularismo racional, que tenha em consideração a História de Portugal e as características da cultura antropológica nacional. E a liberdade de expressão não será mais do que a consequência de uma destas opções.


Notas
1. Este tipo de igualdade baseia-se geralmente, mas não necessariamente, em uma ideia de igualdade natural entre os homens; Isto não significa que todos tenham o mesmo poder ou as mesmas características, mas significa que todos têm uma dignidade igual
2. por exemplo, o respeito pela liberdade de expressão
3. não confundir com o igualitarismo do Partido Comunista
4. aqui, aproximo-me de David Hume em relação à propriedade privada
5. a crítica teológica a uma religião não é necessariamente um insulto; criticar através de uma análise racional não é insultar

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